"Do ponto de vista da saúde pública, hoje a minha visão é pela legalização", afirmou o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, em entrevista publicada na última segunda-feira (9) no jornal Folha de S.Paulo. Salientando que "não há uma posição do governo sobre isso", Temporão voltou a defender um plebiscito sobre o tema, pois "o mais saudável disso tudo será o debate". Veja a íntegra da entrevista. --
Folha de S.Paulo: O Datafolha mostrou que 65% dos brasileiros são contra mudanças na lei do aborto. A sociedade está preparada para a discussão?
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José Gomes Temporão: O resultado da pesquisa não me surpreendeu porque acho que a sociedade brasileira sempre debateu o tema de maneira superficial. Meu objetivo, quando toquei nesse tema há cerca de duas semanas, era chamar a atenção para um debate que sempre foi feito dentro de um contexto moral, filosófico ou religioso, mas não no contexto de saúde pública.
Acho que a pesquisa do Datafolha captou um nível de debate ainda muito precário no Brasil. Em Portugal, eles primeiro fizeram um plebiscito há nove anos -que manteve a legislação em vigor na época- e depois discutiram mais nove anos para realizar um novo plebiscito [em fevereiro], quando a sociedade acabou tomando outra posição. Essa é uma questão que suscita muitos debates entusiasmados e apaixonados, mas que colocam um véu sobre as questões que, para nós, sanitaristas, são importantes, como as situações que levam mulheres e casais a passarem por esse sofrimento. Para subsidiar esse debate, temos que aperfeiçoar nosso conjunto de informações para que possamos ter uma discussão mais aprofundada. No ano passado, o SUS (Sistema Único de Saúde) realizou 2.000 abortos legais e 220 mil curetagens pós-aborto na rede. Não posso afirmar com segurança a percentagem desses 220 mil procedimentos que foram feitos em decorrência de um aborto espontâneo ou de abortos realizados em condições inseguras. Essa é uma informação relevante para a discussão.
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Folha: Se fosse feito hoje um plebiscito, o senhor votaria pela mudança na lei?
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Temporão: Eu te diria que, do ponto de vista da saúde pública, hoje a minha visão é pela legalização, mas não gostaria de me posicionar agora porque, quando o debate for aprofundado, eu poderei captar com mais sutileza as diversas posições e nuances sobre o assunto. Isso vai depender de um conjunto de outras informações de que o sistema de saúde não dispõe ainda para ver com mais clareza essa situação. Acho que o mais saudável disso tudo será o debate.
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Folha: O plebiscito é uma proposta sua ou de governo?
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Temporão: Nesse momento não há uma posição do governo sobre isso. Eu explicitei essa questão como uma opinião de um ministro recém-assumido apenas quando fui questionado sobre o assunto numa entrevista ao jornal O Dia. Mas é evidente que essa é uma questão latente. No Congresso, há uma série de projetos sobre o tema. Vejo esse tema como importante de ser discutido dentro da questão dos direitos sexuais e reprodutivos. No futuro, o governo pode vir a tomar uma posição.
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Folha: Que medidas o sr. pretende tomar para ampliar o acesso a meios contraceptivos como pílulas e preservativos?
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Temporão: Primeiro, é importante ter acesso a informação, que começa na escola com educação sexual e conhecimento dos métodos contraceptivos. A pesquisa do Datafolha mostra que a sociedade aprova plenamente [94% da população] o uso do preservativo, o que destaca a importância da política de conscientização. No entanto, se você não garante a informação adequada de um lado e o acesso aos métodos de outro, você apenas finge que tem uma política de acesso aos meios contraceptivos. Hoje, a população que procura os postos de saúde em busca de métodos contraceptivos distribuídos gratuitamente ou não vai encontrá-los ou vai encontrá-los de maneira esporádica. Isso acontece em grande parte por causa da estratégia de aquisição e distribuição desses métodos por parte do ministério.
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Folha: Onde o ministério falha?
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Temporão: O ministério hoje faz licitação nacional para aquisição de centenas de milhares de cartelas de pílulas. Essa compra é feita de maneira centralizada. O material é estocado em Brasília e depois tem inicio a distribuição pelos 5.500 municípios brasileiros. É uma estratégia completamente equivocada. Basta ver o custo e as perdas no processo de distribuição. Temos que repensá-la. Esse processo tem que ser feito em parceria com os Estados e municípios. Minha idéia é preparar um levantamento, detectar onde estamos falhando e sentar com os secretários de saúde para construir uma estratégia de distribuição e de acesso. O objetivo é garantir que permanentemente na ponta as mulheres e casais possam ter acesso a métodos contraceptivos.
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Folha: O senhor já foi presidente do Inca (Instituto Nacional de Câncer), órgão que promoveu uma cruzada contra o tabagismo e hoje se preocupa também com os hábitos alimentares da população. Como ministro, pretende adotar alguma medida em relação ao consumo de bebidas alcoólicas, por exemplo?
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Temporão: Essa questão me preocupa muito. Vejo com muita restrição a maneira como a publicidade de bebidas alcoólicas hoje aparece para a sociedade. Diria que hoje essa publicidade é ofensiva aos profissionais de saúde por estimular de maneira escancarada o consumo imoderado de bebidas, sem falar na abordagem extremamente desrespeitosa às mulheres. A Anvisa realizou recentemente uma consulta pública sobre essa questão e já existem algumas propostas para regular mais esse tipo de propaganda. Sei que haverá uma polêmica e que a indústria, as agências de publicidade e os meios de comunicação podem, eventualmente, se contrapor a nossa visão para atender a interesses específicos. Mas acho importante colocar em discussão o que seria um conjunto de restrições que impeça que crianças de seis anos fiquem maravilhadas com as propagandas que são passadas na televisão. Como ministro, eu afirmo que, da maneira como está hoje, é insustentável, e é evidente que vou propor mudanças em defesa da saúde da população.
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Folha: E em relação a refrigerantes e outros alimentos prejudiciais à saúde?
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Temporão: Essa é uma questão que se insere dentro de uma política de promoção da saúde.
Eu diria que o Brasil hoje tem uma política de assistência à saúde, mas não de promoção. Se você não trabalha com os determinantes dos processos de adoecimento e morte, você fica na superfície do problema. Sabemos que morrem por ano 550 mil pessoas por causa de doenças cardiovasculares e câncer. Sabemos também que com duas medidas (a mudança do padrão alimentar e a realização regular de exercícios físicos) poderíamos reduzir pela metade essas mortes. Essa é uma questão complexa por trabalhar com padrões introjetados culturalmente e que não são simples de mexer. De um lado, são padrões familiares, mas, de outro, são colocados pela mídia e pelas indústrias de alimentos e bebidas.
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Folha: Mas há quem defenda um papel mais ativo do governo nessa questão, não apenas investindo na educação, mas também restringindo propaganda e venda desses alimentos em escolas. O sr. concorda?
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Temporão: Acho que o eixo deve ser informação e prevenção. Entendo que alimentos cujo consumo exagerado ou em condições específicas possam, comprovadamente, fazer mal à saúde devem ter uma advertência estampada em seus rótulos. No entanto, com relação às proibições de venda desses alimentos em cantinas escolares, acho sempre complicado impor. Toda medida que é muito radical no sentido de proibir acaba tendo uma reação que inviabiliza seu sentido original. Eu apostaria mais no caminho da educação e da mobilização.