Uma histórica entrevista, publicada há exatamente 50 anos, surpreendeu ao mostrar a guerrilha sobrevivente em Cuba, liderada pelo comandante-em-chefe Fidel Castro na Serra Maestra. ''Visita ao rebelde cubano em seu refúgio'' foi como o diário americano The New York Times, em sua edição de 24 de fevereiro de 1957, intitulou a primeira parte dessa reportagem, que atraiu a atenção mundial.
Fidel em Serra Maestra: vivo e ativo
A entrevista - um dos maiores furos da história do jornalismo - revelou que Fidel estava vivo e, mais do que isso, preparava a revolução, que ocorreria dois anos depois. Para celebrar o cinqüentenário desse feito, o Vermelho revela trechos de Marabuzal, de José Antonio Fulgueiras. O livro, em edição, recupera a história da reportagem.
Neste sábado (24/02), confira os bastidores do encontro entre Fidel e o repórter Hebert Matthews, do The New Yor Times. Um segundo trecho do livro será reproduzido no domingo (25), também no Vermelho. Revelará detalhes e impactos da entrevista.
A entrevista legendária
Por José Antonio Fulgueiras
Fidel ordenou a Faustino Pérez, expedicionário do iate Granma, que descesse das montanhas à planície e que, entre as primeiras missões a cumprir, tentasse enviar um jornalista, mas os diretores das principais publicações se recusaram por medo das represálias. Contudo, nos primeiros dias de fevereiro, conseguiram que o destacado repórter Hebert Matthews, chegasse a Cuba...
O caminho apareceu diante de Felipe Guerra Matos como uma corda lamacenta e enegrecida pela noite rural em Manzanillo. Felipe conhecia o caminho como a palma da mão e sabia muito bem onde estavam os cruzamentos da estrada como um reflexo condicionado pelas muitíssimas subidas e descidas. Seu jipe Willy assemelhava-se a um mulo de cascos firmes, domesticado para vencer os obstáculos que os aguaceiros dos últimos dias esculpiram no caminho rústico e estreito.
A seu lado, mais ou menos acomodado no banco dianteiro, viajava o jornalista norte-americano Herbert Matthews, que segundo parece, tentava decifrar através do pára-brisa o caminho que o levaria a um lugar desconhecido na Serra Maestra.
''Creio que não vai chover nesta noite'', disse o motorista em voz alta, inclinando a cabeça para um lado. Depois reparou que o norte-americano sabia pouco ou nada de espanhol. René Rodríguez, Javier Pazos, Quique Escalona e Nardi Iglesias, que também viajavam no banco traseiro também nada responderam.
Então, com o pouco conhecimento que tinha do idioma inglês, tentou enfiar na mente alguma frase para ganhar a amizade do repórter do The New York Times, famoso por seu trabalho como repórter em diversos países do mundo, participando como testemunha de alguns dos acontecimentos mais importantes do século.
O homem, na casa dos 60 anos, foi correspondente de guerra na Abissínia, na década de 30, e na Espanha, durante a Guerra Civil, que acabou com a República. Publicou vários livros e ganhou diversos prêmios, entre os quais, o John Moors Cabot, conferido pela Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia.
Matthews era editor do The New York Times, e se destacava na redação de editoriais e reportagens especiais sobre a América Latina. Com mais de 1,80m, magro, ligeiramente encorvado, olhos claros e olhar penetrante, Herbert Matthews, desde sua posição liberal, era considerado um dos jornalistas mais prestigiados e importantes nos Estados Unidos.
Mister, how do you feel here?, Guerrita queria perguntar, mas essa pergunta pareceu-lhe vulgar para uma pessoa tão experiente na arte das perguntas e respostas.
Saindo de Yara, uma patrulha da estrada os detém. Um guarda, com cara amarrada, aproximou-se deles e Guerrita, sem descer do veículo, respondeu-lhe antes que o homem lhe perguntasse:
- O senhor é um norte-americano rico que está interessado em comprar os campos de arroz de Gómez, disse, enfatizando a palavra rico e o sobrenome do burguês, muito conhecido na zona.
A frase era quase uma redundância para o patrulheiro, pois segundo os jornais e os filmes da época, todos os norte-americanos eram ricos. No entanto, o guarda, satisfeito com as facilidades que sua farda amarela lhe proporcionava para beber uma cerveja sem pagar em qualquer bar de Manzanillo e seus arredores, sabia que incomodar uma pessoa abastada era fatal para suas aspirações de ser promovido para sargento. Então, como diria o poeta Amado Nervo, fez um gesto de cortesia e fechando os olhos os deixou passar.
Para Guerra Matos, depois do ardil efetivo, o mais importante era dirigir o melhor possível por aquele caminho inundado por causa das chuvas recentes e chegar ao destino.
Are you cold?, perguntou-lhe o norte-americano quando o viu fazer um gesto de quem sente um momentâneo calafrio. Mas o homem continuou absorto na escuridão e no pensamento. De vez em vez, quando absorvia o cachimbo que não afastava da boca; depois expirava a fumaça pouco a pouco.
Para chegarem a Matthews, os companheiros do Movimento 26 de Julho tiveram que transitar inteligentemente um caminho perigoso. A idéia foi de Fidel Castro, que com 82 homens tinha desembarcado, dois meses antes (2 de dezembro de 1956) pela praia Las Coloradas, na costa norte da província de Oriente.
Após serem surpreendidos pelo exército batistiano em Alegria de Pío, os jovens rebeldes se dispersaram por diferentes lugares da zona. Alguns foram presos ou assassinados às ordens do presidente Fulgencio Batista; outros puderam burlar o cerco e somente sete conseguiram reencontrar-se em Cinco Palmas, onde Fidel, com uns poucos fuzis tornou célebre em 1956 a frase mais otimista do século 20: ''Agora sim ganhamos a guerra''!
Contudo, a imprensa cubana publicou a notícia de que Fidel foi morto e a guerrilha eliminada. E depois, censura total contra tudo o que e parecesse rebeldia.
Quando subia a montanha, Guerrita lembrou aquele fato:
''Entre os dias 9 e 11 de fevereiro de 1957, perdemos o contato com a Serra, até o dia em que o companheiro Radamés Reyes, telegrafista do quartel e aliado do Movimento 26 de Julho, chegou à loja de Rafael Sierra. Trazia a infeliz notícia de que Fidel e o grupo tinham sido liquidados numa emboscada em Los Altos de Espinosa.
''Rafael Sierra me informou e imediatamente transmiti a Celia aquela horrenda notícia. Com muito otimismo, ela disse: 'Não acredito, pois a imprensa já o teria publicado. Temos que confirmá-lo, mas tenho certeza que ele estava vivo'.''
Fidel está vivo
''No dia seguinte, Miguelito, um filho de Epifanio, chegou e me contou o que tinha acontecido. Eles conseguiram fugir com Luis Crespo. E ele estava certo de que Fidel e outra parte do grupo também conseguiram burlar o cerco inimigo. Disse-me que Crespo, expedicionário do iate Granma, queria nos contatar.
''Celia ordenou-me que fosse buscá-lo. Crespo afirmou que Fidel estava vivo, pois viu que o comandante e o resto do grupo também fugiram''.
''Eu propus a Crespo que o melhor era que ele abandonasse a Serra e respondeu taxativamente: 'Enquanto houver um fuzil aqui, a luta continuará'. Senti grande admiração pela atitude daquele homem semi-analfabeto, que em meio do desespero, mostrava os valores e a qualidade humana dos expedicionários do Granma.
''No dia seguinte, Miguelito retornou de novo a Manzanillo com a confirmação de que Fidel estava vivo e mandou um mensageiro, que esperava por nós na quinta de Epifanio para recolhê-lo, porque recebeu a ordem de se entrevistar com Celia. Fui buscá-lo e quando regressávamos, deparei na entrada de Manzanillo com um soldado da guarda rural que me pediu carona. Parei o carro e o levei. Entrei na cidade protegido por um guarda inimigo e festejando a vida de Fidel''.
Mas a ditadura de Batista se aferrava à notícia de que Fidel e seus homens tinham sido liquidados. Foi por isso que Fidel pediu um repórter, para que publicasse a notícia, mas os chefes da imprensa nacional tinham medo das represálias e por isso foi necessário buscar um jornalista de um jornal influente.
Ruby Hart Phillips, correspondente do The New York Times em Havana, mandou Matthews vir urgentemente para Cuba, pois tinha uma boa notícia para ele. Na segunda-feira, 4 de fevereiro, a senhora Phillips foi convocada para o escritório de Felipe Pazos, no prédio Bacardí, na rua Monserrate. Ali se encontravam também seu filho Javier Faustino Pérez e René Rodríguez, que explicaram à repórter o interesse de Fidel em receber um jornalista no coração da Serra Maestra.
Logicamente, Phillips se ofereceu de imediato, mas foi convencida de que não devia ser ela, pois as condições da viagem eram muito difíceis para uma mulher, e além disso, ela era a correspondente permanente no país e depois podia ser alvo de uma forte represália do regime de Batista.
No telefonema de Phillips e Matthews não se deram muitos detalhes, mas um jornalista experiente como ele sabia que se tratava de algo muito importante.
Cinco dias depois, Matthews, acompanhado de sua esposa Nancie, chegou à terra cubana. Em 15 de fevereiro, às 22h, hospedou-se no hotel Sevilla, com sua mulher, e se encaminhou para o oriente do país, com Faustino Pérez, que desde o primeiro momento trabalhou incansavelmente para executar a ordem que Fidel lhe tinha dado.
Faustino acompanhou o destacado jornalista até Manzanillo. Guerrita viu pela primeira vez o jornalista nessa cidade, em casa de Pedro Eduardo Saumell, e pensou que era um homem muito idoso para viajar pelo caminho difícil que o levaria à Serra. E por seu cachimbo e boné, segundo ele, parecia-se mais com um detetive privado ao estilo de Sherlock Holmes do que com um repórter com vigor e juventude para escalar, por exemplo, a Colina de la Derecha de Caracas, que se ergue majestosa, vestida com a verde folhagem da Serra.
Matthews e Nancie estavam cansados pela longa viagem, quase sem dormir, por toda a Rodovia Central. Somente detiveram-se em Camagüey para tomar o café da manhã. Depois continuaram rumo a Bayamo e entraram no trecho mais difícil, custodiado por várias patrulhas do exército. Seus visíveis traços de turistas estrangeiros lhe permitiram entrar em Manzanillo sem muitos contratempos, acompanhados por Faustino Pérez, Javier Pazos e Lilia Mesa.
À medida que a encosta e a água estagnada exigiam maior velocidade do motor do jipe, Guerrita olhava de esguelha o norte-americano, que tinha deixado sua esposa na casa do anfitrião, Saumell, em Manzanillo. Ele estava concentrado na direção do jipe, nas velocidades e no freio, evitando os saltos e as freadas abruptas. Contudo, de vez em vez, quando o jipe dava um grande salto como um cavalo ferido pelo ginete. Sempre que isso acontecia, Guerrita olhava para o rosto do norte-americano, tentando ver algum gesto de contrariedade, mas o homem aceitava sem alarde os saltos do jipe por causa do caminho alagado.
Esta era a terceira viagem no mesmo dia à quinta de Epifanio Díaz, camponês, de amizade sincera e um dos primeiros colaboradores de Fidel e da guerrilha depois do desembarque.
Faustino o levou a Manzanillo e Almeida foi o primeiro a recebê-lo na Serra
A casa do velho Epifanio erguia-se solidária em Los Chorros, a sul do Purial de Jibacoa, na vertente norte da Serra Maestra. Na quinta não havia grandes elevações que possibilitassem o refúgio da guerrilha, embora pelo lugar em que se encontrava, facilitasse o acesso de qualquer veículo ou pessoa que não conhecia o caminho.
Fidel, que conhecia a lealdade e colaboração de Epifanio e de seus dois filhos, Enrique e Miguel, decidiu esperar nesse lugar o jornalista norte-americano e ao mesmo tempo realizar a primeira reunião com os principais dirigentes da planície oriental.
Filho de camponeses, e camponês ele também, Guerrita podia determinar as horas apenas olhando os astros. Por tal motivo, quando viu a lua no centro do céu, soube que, no domingo, 17 de fevereiro de 1957, quase estava terminando.
Foi então que deteve o veículo e disse que havia que continuar a pé. Matthews desceu do jipe e caminhou com os outro em meio da escuridão e do cício do grilo insone. Guerra Matos, conhecedor do caminho, ia à frente e o jornalista se guiava por seus passos, sem soltar o cachimbo nem as ânsias de chegar.
De repente apareceu diante deles o riacho Tío Lucas, que corria entre as árvores da Serra. Para chegar ao acampamento, era preciso atravessar o riacho de águas frias e as correntezas. René o explicou ao repórter do The New York Times e este respondeu com um gesto animador.
Matthews entrou brioso, mas em meio do riacho perdeu o equilíbrio e caiu na água. ''Danou-se o norte-americano''! gritou Guerrita. Mas, apesar do surpreendente esbarrão, o jornalista levantou a pequena carteira que levava nas mãos, sem soltar o cachimbo da boca. Guerrita ofereceu-lhe a mão em sinal de ajuda e o norte-americano se incorporou com certos brios juvenis.
O riacho da Serra, que comprazia a Martí mais que o mar, se comporta como um cachorro faminto que lambe constantemente as pedras do fundo até deixá-las polidas. Matthews, ao que parece, não levou em conta o curso fluvial, e esbarrou como um clássico jogador de beisebol à procura da base.
Contudo, não perdeu a postura nem a inteireza, e com gesto elegante, exortou a prosseguir a viagem rumo ao acampamento, que, sem ele saber, apenas faltava uns poucos minutos.
O primeiro a recebê-lo foi o expedicionário Juan Almeida Bosque, que lhe explicou que Fidel se encontrava nesse momento no Estado-Maior e que chegaria ao amanhecer. Matthews simpatizou, desde o primeiro momento, com este homem que apoiava suas palavras na tradução de Pazos e lhe informou que a tropa dispunha de vários acampamentos.
A conversa demorou vários minutos, incorporando-se depois Ciro Frías e outros guerrilheiros. Almeida pediu a Matthews que descansasse um pouco. O norte-americano concordou e tirou do bolso uma caixa de fósforos, que sobreviveu do mergulho da madrugada e acendeu o cachimbo imutável.
Celia Sánchez lembrava:
Naquela noite, fomos caminhar para ver se encontrávamos uma pequena casa que víamos de dia. Íamos Fidel, Armando, Frank, Vilma e eu; e Luis Crespo que sempre estava perdido, e foi como guia. Não encontramos a casa; caminhamos tanto pela noite, que depois não soubemos voltar ao acampamento; deitamo-nos em pleno campo. Nessa madrugada chegou Matthews. Quando Universo chegou com a notícia, ordenamos-lhe que dissesse que Fidel estava em outro acampamento, que o esperasse ali. Almeida, Che e Raúl ficaram com o visitante.
No alvorecer, chegou ao acampamento o grupo liderado por Fidel. Vilma Espín, prestigiosa combatente da clandestinidade em Santiago de Cuba, que foi levada horas antes por Guerrita para o acampamento, e Javier Pazos, foram os tradutores, apesar de Fidel ter bom domínio do idioma inglês.
Raúl se adiantou ao grupo e cumprimentou o jornalista, anunciando a chegada de Fidel. Em seu diário de campanha, o então capitão Raúl Castro narrou o fato da maneira seguinte:
Chegamos ali e dei um abraço no ''Flaco'' (O Magro) - René Rodríguez -, que cumpriu realmente o que prometeu. Cumprimentei o jornalista e lembrando meu inglês elementar, lhe disse: How are you? Não entendi o que me respondeu e imediatamente chegou F (Fidel), que depois de cumprimentá-lo, sentou-se com ele na cabana e começou a entrevista, que, com certeza, será uma bomba (...) Enquanto corria a entrevista, o oficial Almeida triplicou a vigilância, tomando todas as medidas de segurança ao nosso alcance naquele lugar. Infelizmente esta é uma zona completamente a céu aberto e foi um atrevimento afastarmo-nos tanto de nossos queridos arvoredos. Se nos surpreendiam por causa de uma delação, o Movimento 26 de Julho sofreria um colapso, pois poderíamos perder alguns de nossos valentes homens.
Guerra Matos, por seu lado, o descreveu assim:
''Vi Fidel chegar e cumprimentar o jornalista, e senti uma imensa satisfação, mas não a externei. Tinha contribuído com um grãozinho de areia para este encontro tão esperado por nosso máximo líder, que tinha uma grande importância, pois tornaria público ao mundo que Fidel estava vivo e a guerrilha pronta para o combate. Em todo o percurso, fiz todo o possível para que o norte-americano se sentisse o mais cômodo e seguro possível, pois se ele se arrependesse no último instante, isso marcaria minha vida para sempre.
''Quando escorregou no riacho, fiquei desapontado e não consegui fazer coisa alguma para impedi-lo. Mas o jornalista tinha muita determinação como nós para chegarmos ao acampamento e nenhum bombardeio nos deteria. Percebi o entusiasmo de Fidel quando se dirigia a Matthews e esse regozijo o transmiti a meu coração.
Fidel cumprimentou Matthews com cortesia e singeleza. Com muita naturalidade, sentou-se em frente do repórter do The New York Times e começou a entrevista.
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